Os fantasmas da nova capital
Vários fantasmas assombraram Belo Horizonte desde sua inauguração, em 12 de dezembro de 1897. A pesquisadora Heloísa Starling, da UFMG, alerta que para entendermos estes fantasmas devemos antes conhecer o contexto da construção da capital, que, oficialmente, teve o nome de Cidade de Minas até 1901.
BH é a primeira cidade planejada e organizada após a proclamação da República do Brasil, em 15 de novembro de 1889, e a ideia da comissão de construção da então nova capital era acabar com qualquer resquício que lembrasse a monarquia. Por este motivo também deveria deixar de ser a capital de Minas Gerais a velha Vila Rica, atual Ouro Preto, com seus velhos casarões e ruas sinuosas, características que remetiam aos tempos coloniais.
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A nova capital foi então construída sobre a velha freguesia de Curral del Rey, cuja história e personagens foram enterrados e esquecidos ali mesmo, sob os próprios escombros, para não haver sombras do passado. Sobrou pouco a se contar deste pacato lugarejo onde, durante o dia, a farmácia Abreu era o ponto de encontro para o bate-papo.
À noite, as mulheres faziam suas novenas e os homens, as conversas de botequim no armazém Esperança. Apenas aos finais de semana e nos dias de festa era que a freguesia ganhava mais frequentadores, que vinham dos arredores.
A freguesia de Curral del Rey teve em seu auge cerca de 18 mil habitantes, quando viajantes por ali passavam conduzindo gado em direção às minas de ouro. Mas, à época da construção da nova capital, já decadente, possuía em torno de 4 mil habitantes. Era um lugar tranquilo e seus moradores comemoraram bastante a notícia da transformação da freguesia na nova capital de Minas, mas sem saber que nela não haveria lugar para eles.
De fato, BH já nasceu segregada, particionada e sofreu várias transformações do espaço urbano nas décadas seguintes à inauguração. A avenida do Contorno, à época chamada 17 de dezembro, dividia o urbano do suburbano.
O urbano tinha a avenida Afonso Pena como eixo principal, as habitações luxuosas dos funcionários do governo no bairro Funcionários, a avenida do Comércio – posteriormente renomeada Santos Dumont, após a visita do Pai da Aviação. Também edifícios públicos do estado na Praça da Liberdade e outros espaços para lazer, espaços coletivos e os serviços urbanos ligados à infraestrutura. Mais tarde Brasília também adotaria este modelo setorizado.
Já o suburbano, formado por ruas não regulares, sem infraestrutura e nem acesso ao centro urbano era destinado aos trabalhadores da construção da nova capital. Muitos deles vindos de outros países, visto que foram demandados aproximadamente seis mil trabalhadores nas diversas obras. Fora do centro urbano, ainda havia a zona rural, dividida em cinco colônias agrícolas, destinadas aos trabalhadores da terra para suprir a nova capital de hortigranjeiros.
A construção da nova capital demorou pouco menos de três anos, tempo insuficiente para concluí-la. Mesmo após a inauguração, amontoavam-se ruínas da velha freguesia nas ruas de terra da nova cidade. Também não houve dinheiro para construir a catedral (ficaria onde é hoje o prédio da Oi, na Afonso Pena com Contorno), nem o da prefeitura no local originalmente planejado (onde é a praça Raul Soares). Para quem não sabe, o Parque Municipal foi muito reduzido em suas dimensões (a área original ia até o final da Assis Chateaubriand, na Floresta).
“Muitas ruas, nem árvores, nem habitantes, vento e poeira; uma sinistra cidade nascida morta, parecia”, nas palavras do cronista Emílio de Menezes.
Em relação aos antigos moradores da freguesia e aos trabalhadores da construção da cidade, após a inauguração, para onde iriam? Vagavam consternados por aqueles traçados cartesianos com retas diagonais, à maneira como foram desenhadas as ruas nas pranchetas dos engenheiros comandados por Aarão Reis (1853-1936), o paranaense e engenheiro-chefe da comissão construtora.
Transformou-se numa cidade fantasma de significâncias passadas suprimidas pelo conceito de modernidade. As ruas na nova capital eram lugares de tráfego e não de encontros, como foi em Vila Rica. Não havia possibilidade de intervenção dos habitantes neste novo modelo e os sentimentos de pertencimento e identidade se desconstruíram.
Neste contexto, desperta em parte da população de passado comum, chamada comunidade afetiva, a memória coletiva que compartilha lembranças por meio de linguagem oral ou simbólica. Na construção da memória, os lugares são referências importantes e, não por acaso, os fantasmas de BH se materializam em lugares públicos, de convivência comum.
É o caso do “fantasma do bairro da Serra”, que aparece à meia-noite e trinta, sob o nevoeiro dos meses de junho, nos portões das casas da rua do Ouro com Contorno, no limite entre o urbano e o suburbano, remetendo aos despossuídos que terminada a construção buscaram aquele lugar para se refugiarem.
Ou o Avantesma da Lagoinha, que assustava os motorneiros se sentando à noite imóvel sobre os trilhos dos bondes, reprimido pelo modelo de segregação imposto pela nova capital.
Ou a Maria Papuda, última moradora de Curral Del Rey, cujo casebre se localizava onde hoje é o Palácio da Liberdade e que amaldiçoou quem no seu terreno residisse.
Curioso neste caso é que o primeiro governador de Minas, eleito em 1902, após a construção da nova capital, Silviano Brandão, morreu sem tomar posse. Ou a Moça Fantasma, que desce solitária a Serra do Curral para o bairro Funcionários. Enfim, a Loira Fantasma do Bonfim, que retorna de bonde da zona boêmia, de tantos bandidos e prostitutas, para a sua última morada.
Se estes fantasmas existiram? Claro que sim. Na forma inquietante de fragmentos fugidios e impotentes da velha freguesia, enterrada sob a égide da ordem e do progresso.
PS: Da fama da Loira Fantasma, aproveitou-se um hábil mecânico do bairro Bonfim para construir e dar movimentos a uma boneca loira com o intuito de espantar os frequentadores notívagos que importunavam a paz do cemitério e de seus moradores, referindo-me aos moradores do bairro, claro. Não há registro de quando se deu este fato. Abraços e até a próxima.
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